segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Metamorfoses da Habitabilidade" III

Como via de acesso ao trabalho de Margarida Santos proponho o material da sua construção. O carvão. A identificação de um enorme casulo numa das suas obras levou a esta via, da matéria orgânica, sedimentada e transformada por milénios em, precisamente, matéria de factura.

As formas que Margarida constrói implicam toda uma tectónica que o pensamento acerca do carvão revela. Um processo de interioridade, onde as coisas entram, são transformadas, interiorizadas, e explodidas para a superfície do papel que as suporta.

E a ligação que estas obras, a sua escala, estabelecem com o observador é também instintiva e directa, esmagadoramente animal, além da razão de uma lógica dicotómica. E aqui contactamos o território de Bataille, naquela vertente que a curadora da exposição enuncia no seu texto.

Passado este embate inicial começa-se a perceber a combinação entre gestos inicialmente soltos e intensos e outros, posteriores, mais controlados  e delicados que vão consolidar nos desenhos a força inquietante que nos é transmitida.

"Metamorfoses da Habitabilidade" II

No trabalho de Patrícia Gonçalves somos levados às bases da luz e da fotografia. Dos fundos negros, informes, saem raios de luz e cor. Estabelecemos formas orgânicas tornadas voláteis pelas novas formas que emergem; uma dialéctica entre o assassinato e o renascer da forma, da transparência, da cor, da luz, e finalmente do significado.
Mas desta exploração do efémero a autora indica-nos um resultado muito concreto: a  excrescência material que sai da obra - uma bola de cristal - que pela sua própria natureza e forma metamorfoseia e rende efémeras a luz incidente e a própria indicação precisa de materialidade.

A presença de uma moldura branca vazia lança-nos noutro sentido sobre a natureza fragmentária da imagem fotográfica, e lembra-nos um dos significados da moldura: fragmentar o mundo em geral em pedaços inteligíveis. Patrícia propõem assim a base de um pensamento que depura, que fragmenta, que rende abstracto, que re-combina, para chegar a uma nova ideia concreta que confirma a sua própria instabilidade de referência.

Lembra uma máquina de Babbage, concreta, complexa, relacional, mas neste caso os resultados da operação computacional são des-ligados e libertos das suas variáveis iniciais.

«Metamorfose da Habitabilidade» I

Começo pelo trabalho que mais clara ligação estabelece com Tavira. Miguel Andrade fotografou Tavira, incluindo das tomadas de vista icónicas bem conhecidas para depois abordar outras de âmbito mais pessoal. Constituindo a quarta geração de uma família de fotógrafos dá continuidade à documentação deste local, alimentando o seu trabalho do rigor dessa tradição. Mas a essa continuidade acrescenta a sua visão crítica que nos alimenta o pensamento. Em primeiro lugar as imagens são apresentadas num suporte de tela que pode, numa primeira análise, ser visto como uma ligação às tradições da pintura, ligação sempre problemática do ponto de vista das histórias dos dois suportes. Propomos outra vontade que se afasta desta problemática disciplinar. 

A fotografia pela sua natureza fragmenta, descontextualiza, retira do tempo pedaços e isola-os. Mas Miguel não é turista em Tavira, é um seu habitante desde que existe, e esta fragmentação não e o seu objectivo final. Da pintura o que ele vai buscar é a ideia da construção do “quadro” como todo dialéctico e narrativo. Nestas imagens encontram-se elementos dessa narrativa, o rio, a ponte, o deposito de água, ás árvores ribeirinhas, a torre do relógio, entre muitos outros. E quando nos aproximamos, outras camadas de elementos reconhecíveis se vão revelando, confirmando a capacidade da fotografia de aumentar a capacidade do olho humano.

Mas a hipótese de narrativa não fica por aqui, como em qualquer grande quadro. Miguel parece metamorfosear os termos de referência da imagem fotográfica em que o branco - incluindo o da cal - é substituído pelo preto informe que domina as imagens.

E dentro desta inversão dos termos de referência da fotografia somos levados a procurar  algo que nos permita regressar ao conhecido. E aqui começam a emergir os contornos das formas fotografadas, reveladas justamente pela anulação do poderoso branco da cal. E daqui nasce uma renovada visão de Tavira, das suas formas geométricas tectónicas. E se isto não bastasse, no meio do negro profundo encontramos pontuações de cores primárias, que nos impelem a procurar novos caminhos de narrativa e significado.

Uma Tavira nova que emerge da obscuridade do negro profundo, fragmentada pela fotografia e re-unida - um quadro - no painel que é esta obra.

Artistas locais - para que ?

Um artista ao viver e trabalhar num local constrói aí raízes; a sua produção parte e é desenvolvida com o conhecimento do local, com as preocupações e as aspirações dessa comunidade. O trabalho poderá ou não manifestar esses a prioris mas quando o faz estabelece uma ligação tectónica - invisível e poderosa - com a comunidade local.

Acarinhar e apoiar tal trabalho deve ser uma prioridade das comunidades locais, especialmente em face às agudas crises de valores que se fazem sentir na actualidade. Apoiar e participar na produção artística local é apoiar a exteriorização e a clarificação das problemáticas reais e existentes no local. E assim se constituem os sintomas da arte - a reacção do público - que devem contribuir para novas problemáticas e resoluções, num processo dialéctico.

Como redundância final proponho que só podemos formular soluções para sintomas perceptíveis. As problemáticas invisíveis passam por isso mesmo despercebidas do público em geral e vão-se juntando num efeito bola de neve que quando reaparecem impõem-se pela sua dimensão esmagadora.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Allgarve mexe, também connosco

Temos como ideia clara que o apoio às artes no Algarve tem-se vindo a concentrar e a ser distribuído através desta iniciativa. A ideia por trás desta mensagem é lançar um debate que permita agrupar ideias críticas e construtivas acerca do êxito ou não da iniciativa e do seu impacto local. O meu comentário começa pelo nome, que mais faz lembrar um forró do que outra coisa. Porque este rótulo? Ou seria a ideia espantar a produção artística local para abrir caminho à produção do resto do país que pouco ou nada ligam à questão do rótulo – não lhes toca – mas sim às condições existentes para produzir e mostrar trabalho?